A formulação anterior, "por que o ser humano precisa se educar", por outro lado, sugere que ele possa - e deva - se educar a si próprio... Essas questões são complicadas. Aqui vamos procurar concentrar nossa atenção nesta questão "por que educar?" sem definir com mais rigor se um ser humano é educado por outros seres humanos ou se ele se educa a si próprio - ou, possivelmente, se acontece uma mistura dessas duas coisas à medida que a sua educação evolui.
A discussão do "por que" do educar vai, posteriormente, nos levar à discussão do "para que" do educar, porque essas duas questões são, como se verá, estreitamente ligadas.
Então: por que educar?
Nós, os seres humanos, e todos os demais seres, animados ou inanimados, temos uma natureza própria. É difícil definir com precisão qual é a natureza humana (tendo havido até os que negam que ela exista...). Mas há certos elementos básicos dos quais é difícil fugir. O ser humano (envolvendo, naturalmente, o macho e a fêmea da espécie) é, sem dúvida, um animal. Como os outros animais, ele se alimenta, se defende de ambientes hostis (incluindo a própria natureza física, outros animais, e até mesmo outros seres humanos), cresce, se reproduz, e morre.
O ser humano, porém, é diferente dos outros animais, que já nascem com vários instintos que lhes facilitam viver e lhes permitem sobreviver - ou, pelo menos, que os ajudam a sobreviver. Boa parte dos outros animais é capaz de se locomover com certa autonomia quase que desde o momento do nascimento. Muitos aprendem a se alimentar e a se defender bastante cedo e se tornam adultos e autônomos (até mesmo para se reproduzir) com razoável rapidez (em relação à duração total de sua vida). O ser humano, não. O bebê humano é um incapaz perfeito. Se desassistido, morre em pouco tempo. Leva quase um ano para conseguir andar precariamente, mais de dois anos para se comunicar minimamente com seus semelhantes, de cinco a dez anos para se tornar relativamente autônomo na busca de alimento, de doze a quinze anos para conseguir se reproduzir. Além disso, não é extremamente veloz, não enxerga nem ouve tão bem quanto alguns outros animais, não tem muita força, não tem dentes caninos poderosos nem garras ameaçadoras que possam ajudá-lo no combate com outros animais.
Os outros animais desenvolvem essas características de forma instintiva, basicamente natural, sem muito esforço de sua parte. Basta, em grande medida, deixar passar o tempo que eles se tornam aquilo que está geneticamente programado que eles devem ser. Mesmo que seja possível interferir nesse desenvolvimento, como, por exemplo, acontece quando domesticamos certos animais selvagens, isso se faz através da ação de uma outra espécie (no caso, os seres humanos), não através da ação dos membros da mesma espécie. Um casal de leões não consegue domesticar seus leõezinhos para que eles se tornem menos ferozes... nem um casal de esquilos consegue tornar os seus filhotes ferozes para que possam sobreviver melhor...
O ser humano não tem nada disso. Ele nasce, como se disse, um perfeito incapaz. Mas ele tem um potencial muito maior do que o dos demais animais - tanto que, ao longo de sua evolução, veio a dominá-los, embora eles, em geral, sejam mais fortes, mais rápidos, mais ferozes do que ele...
Isso se dá porque, felizmente (para nós), o ser humano tem uma ferramenta de sobrevivência que os demais animais não têm: sua razão (que o torna um animal especial). Assim, o homem não é um mero animal: é um animal racional, que possui, como ferramenta de sobrevivência, sua capacidade de perceber o mundo de uma forma sui generis, construindo conceitos e emitindo juízos, imaginando estados de coisas que não existem, criando valores e agindo para transformá-los em realidade.
É essa natureza humana que torna possível que o ser humano seja capaz de olhar ao seu rodar, perceber a realidade que o cerca, mas não se contentar com ela. Mas a natureza do ser humano não o obriga a viver em descontentamento: ela lhe permite tomar a decisão de transformar a realidade que não o satisfaz. Para transformá-la, ele tem, primeiro, que imaginar uma realidade diferente, que ainda não existe, para, em seguida, se perguntar, "Por que não?", e, daí, começar a construí-la. Ao concluir que determinada realidade não o satisfaz, o ser humano está atribuindo valores - em alguns casos a objetos e estados concretos, que existem ao seu redor, em outros casos a objetos e estados de coisas (ainda) inexistentes, em outros casos a idéias, ideais e valores, pelos quais ele muitas vezes se dispõe a arriscar sua vida, isto é, seu bem mais precioso...
É parte da natureza do ser humano a sua capacidade de sonhar, de se propor objetivos e metas, de se apaixonar por seus sonhos, de construir planos para transformar esses sonhos em realidade e para alcançar seus objetivos e metas, de agir na execução dos seus planos, de revisá-los e ajustá-los, quando necessário, de persistir na busca dos seus sonhos mesmo na face da maior adversidade, de pensar a longo prazo, de se preocupar com o que a posteridade vai pensar dele depois de ele morrer...
Infelizmente essa ferramenta de sobrevivência do ser humano não funciona automaticamente como funciona o instinto de sobrevivência dos animais. Ela só funciona se o ser humano, por um ato de vontade, desejar que ela funcione, decidir que vai usá-la e se preocupar em aprimorá-la e aperfeiçoá-la. E isso o ser humano só consegue fazer a partir do momento em que alcança uma certa maturidade - algo que começa a acontecer quando ele chega na adolescência - e não termina nunca mais... O momento do "estalo" (como o estalo de Vieira) se dá quando o ser humano percebe que sua vida não é geneticamente programada para ele, como a dos animais, e que, para sobreviver, ele tem que construir a sua própria existência, em liberdade. A construção de sua própria vida é o maior projeto que um ser humano tem diante de si. Nisso somos iguais.
Mas somos drasticamente diferentes um dos outros nos projetos de vida que elaboramos para nós mesmos. Por isso a liberdade é essencial: para nos permitir construir projetos de vida drasticamente distintos. É nesse momento que o ser humano percebe que, para construir a sua vida, ele tem que conhecer uma série de coisas: a realidade natural que o cerca, a sociedade em que vive, e, naturalmente, ele próprio. Nesse processo, ele vai descobrir que algumas coisas contribuem para que ele viva a vida que deseja viver (com que sonhou), outras conspiram contra ela, outras são indiferentes. E ele vai aprender a conscientemente atribuir valor a tudo que o ajuda a viver a vida que ele escolheu viver, combater o que conspira contra seus planos, e, provavelmente, ignorar o restante. Nesse processo o ser humano vai desenvolvendo sua moralidade. Ele vai aprendendo que o moralmente certo é aquilo que o ajuda a viver a sua vida como ser racional, livre, autônomo, responsável, solidário - e o imoral é aquilo que o impede de alcançar a plenitude daquilo que ele concebe como o ser humano.
A adolescência é, em geral, um período de conflitos porque, nos anos que a antecedem, outras pessoas, em geral os pais, sonham com o que seus filhos serão um dia, constroem projetos de vida para eles... E esses sonhos e projetos podem não corresponder exatamente aos sonhos e projetos que eles têm para si próprios... Às vezes as divergências não são tão grandes quanto ao objeto dos sonhos e projetos, mas, sim, quanto à forma, ou ao momento, de transformá-los em realidade...
Por que educar?
O ser humano se educa porque ele, embora tenha um potencial enorme ao nascer, pode, por uma série de fatores, não vir a desenvolver todo o seu potencial. Para que ocorra, o desenvolvimento do seu pleno potencial humano precisa ser visto como o principal projeto de sua vida - e ser visto assim não só pelo ser humano, individualmente, mas por aqueles que o cercam: a família, a comunidade, e, a partir de um determinado momento, a escola, e até mesmo a sociedade, como um todo, em que ele vive.
A educação do ser humano começa quando ele nasce - e termina apenas quando ele morre. A educação é o processo mediante o qual o ser humano se capacita para viver - para viver seus sonhos, para viver seus projetos, para viver, enfim, a vida que escolheu para si próprio.
Autor: Eduardo O C Chaves